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quinta-feira, 9 de junho de 2011

A crônica, por mim mesmo: um breve ensaio


Numa roda de letrados... Meus caros censores que me perdoem, julgo que cada cronista possui uma definição própria, bem subjetiva do gênero, baseada, sobretudo, nas leituras que já realizou. Quem já não se perguntou se o que lia era realmente crônica ou mesmo hesitou se o que escrevia pertencia mesmo aquele gênero. A meu ver, é gênero crônica o que o escritor assinala como crônica. Se causa estranhamento, se destoa ou não de conceitos delimitadores é porque o próprio gênero é multifacetado, tem em sua geografia tênues fronteiras, podendo vez ou outra o cronista visitar mais de um destino. Com a pena à mão, as distâncias se encurtam, é possível ir e voltar nas tramas e roteiros engendrados pela linguagem.


A crônica a meu ver é um laboratório onde se criam todos os tipos de experimentos com a linguagem, com temas, recursos expressivos, estilísticos e retóricos. Seja numa linguagem mais coloquial, seja numa linguagem formal, é o cronista que pincela com tons e cores próprios a matéria prima de que se serve para o labor da escrita. Não raro, envereda-se pelas searas do lirismo poético, pelas facetas da política, pelo jornalismo crítico ou esportivo ou pelo engenhoso e expressivo ensaio.


Obra cultural ligada ao tempo, produto de uma mente engenhosa, espaço imanente da subjetividade, esplendor da criatividade verbal. É parte indissociável da realidade, captada e transfigurada pelo modo idiossincrático que o cronista tem de pensar e ler/ver o mundo. É neste sentido que os cronistas tornamo-nos infensos aos versos drummondianos: nós cantamos este mundo caduco, e, não raro, somos os que a ele dão um pouco de sanidade. Concordamos, porém, quando o mesmo Drummond afirma ser a matéria da crônica o tempo presente, os homens presentes, a vida presente. A crônica é a instância do evento, o lugar por excelência do espaço, tempo e assunto do aqui, agora.


Costumo dizer que a Crônica é uma forma de intervenção no mundo e tem como especificidade o empreendedorismo subjacente ao processo de escrita: disseca a realidade, faz um recorte geográfico do espaço, pensa a história do evento como um fato não consumado, transcende sobremaneira o real, subverte a lógica, tematiza o vil, o infame, o grotesco, o trivial, o belo; fotografa com palavras o que passa desapercebido a outrem, e o quinhão de tudo isso é que não se pode falar em crônica, mas em crônicas, carecendo, pois, de um genitivo de posse, que indique sua gênese, identifique seu escritor. Corrija-me, leitor, se tu mesmo não aplicas genitivo de posse às crônicas que lês: crônica de Sabino, crônica de Rubem Braga, de Machado, de Veríssimo,de fulano, enfim...


O ritual de iniciação de um neocronista passa, sem dúvida, pela leitura de crônicas diversas, pelo universo temático, pelas peripécias linguísticas a que um consagrado cronista submete seu texto. É como diz Guimarães Rosa: “são as águas de vários rios que matam a minha sede”. Sãs as várias leituras realizadas que vão forjando um estilo nesse leitor/cronista, forjando um fazer literário particular, que paulatinamente instaura um estilo próprio no escritor que se enleva.


E, por ser o estilo tão eminente e destacado recurso expressivo, a crônica torna-se tão diversa, tão híbrida que rejeita definições inequívocas, delimitações atemporais. O estilo é o toque particular, o jeito individual que aprimora os recursos estéticos da linguagem, a liberdade da criação virtualizante. É, por isso, anárquica, alheia a qualquer fórmula homogeneizante, pois cada cronista tem em si o germe de sua prosa contemporânea.


A crônica é um gênero libertário, possui a essência da mesma liberdade dos poemas modernistas, da dessacralização temática dos poemas de Baudelaire, dos ínvios rumos da prosa machadiana, da criatividade roseana. Traz ela em si o drama da linguagem, o ímpeto tempestuoso do escritor romântico que se debruça disposto a arrancar de si a verve literária. Dou-te, leitor, a chance de rivalizar em crônica, de sabatinar-me, de engendrar-me tuas hipóteses nas linhas desse gênero ou calar-te. Pois assim, dou-lhe a saber que posso estabelecer diálogo com aquele que julga compreender minha escrita.


Se da tradição da salvaguarda do passado histórico, herdamos o apreço pelos grandes acontecimentos, pelos fatos extraordinários de um povo, trazemos, pois, para a crônica contemporânea o corriqueiro, o trivial, a tradição cotidiana, retalhos da vida moderna costurada fio a fio no tecido da linguagem.


Da notícia jornalistica à crítica pessoal a um sistema, governo ou pessoa; ao estilo lírico poético, ensaístico, a crônica serve de ferramenta cuja função mor depende do estilo do cronista, do afetamento que pretende produzir em seu público leitor.



Autor: André Marques

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